Ritmo — Tambor — Cristo

Marivaldo Lima
7 min readSep 13, 2022

Como alguns sabem, eu sou baterista. Trabalhei durante muito tempo com percussão popular, na aplicação da profissão nas diversas áreas da cultura popular pernambucana. Eu tocava Pandeiro, Alfaia, Zabumba e afins. Lembro a primeira vez que os irmãos da igreja viram meus videos tocando nos batuques nordestinos. Eles caíram na risada, não esperavam que o Marivaldo de hoje foi um cara que, anos atras, tinha cabelo grande, brinco alargador e calças com estampa de chita.

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Vamos deixar o passado, apesar de muito bizarro, para trás e focar no que eu realmente queria abordar nesse texto. (rs)

Durante minhas andanças, como amante de musica, sobretudo do ritmo, sempre estive atento as nuances rítmicas das culturas em que tinha contato: estava sempre alerta as células rítmicas de ritmos como Samba e Ijexá, Forró e Baião; do modo como tocar — a baqueta em tal estilo se pega desta forma ou de outra etc. E assim seguia minha pesquisa, que, vale ressaltar, nem sempre esta relacionada a leitura, em si, mas também na vivência, e minha pesquisa era metodologicamente vivida. É vivendo que, geralmente, se conhece algo, acredito.

Lembro-me quando uns americanos vieram ter aula sobre Maracatu comigo, eles perceberam que a forma de pegar a baqueta (grip) dos batuqueiros era diferente da pegada tradicional, americana até. O mais louco nisso é que havia diferença no som dependendo da forma de como se tocava. Ou seja, o ritmo não é somente um ritmo, há uma forma de como tocar, uma cadência, um contexto, sobretudo.

Passei muito tempo dando aula nesse ambiente popular. Lembro-me de uma viagem que eu fiz para Exu, a cidade natal de Luiz Gonzaga, estava avido em pesquisar a raiz dos ritmos nordestinos. Lá, eu queria aprender o baião e o xote, o sentido do que seria, de fato, o pé de serra. Fomos para um bar — de barro/taipa — la eu pude observar o verdadeiro sentido do baião: trabalhadores cansados de um dia intenso de labor fazendo brilhar um ritmo que, apesar de sair de um lugar tão distinto, pequeno e aleatório, conquistou o mundo. Isso é incrível.

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Certa vez, estava eu assistindo uns videos sobre produção musical no You Tube, na plataforma do Puremix — renomada escola de produção — e, ao fundo, estava tocando um lindo xote instrumental. Pensei, não sabe Luiz Gonzaga aonde ele fez chegar manifestações culturais encravadas no esquecido sertão nordestino.

A música tem disso, ela é intrometida, vai a todo lugar, sem ser chamada; conquista todo mundo, não há barreiras linguísticas para ela. Quando você menos espera, encontra um som que você não imaginaria que iria encontrar naquele lugar.

Todas essas experiências passaram, e eu as vivi intensamente, tanto que confesso ter me perdido no caminho, mas houve um momento que eu achei uma passagem para uma vida melhor. Foi quando eu decidir andar com Cristo. Aqueles dias marcaram minha vida, mas eu realmente senti a necessidade de mudar minha mente, a forma de como eu tinha que levar cada pedacinho da minha vida. O problema é que eu nasci de novo, mas com um corpo em que nascera há anos, pensava (rs). Isso acontecia principalmente dentro dos parâmetros musicais: o que eu vou fazer com a minha musica? Como eu vou tocar num ambiente em que não proporciona momentos de intimidade com Deus? Aquela velha dualidade do músico, entre o mundo e a igreja. Uma coisa eu tinha certeza, mesmo com pouco tempo de convertido, não dava para tocar Maracatu na igreja. Triste eu, não sabia de nada mesmo…

Os anos passaram e eu comecei a atuar, mesmo que de modo muito restrito, no nicho musical cristão; os ritmos eram outros, os que eu era acostumado estudar no conservatório. Vale uma pausa desse relato para abordar uma situação. lembro-me que, no inicio, quando comecei a tocar na igreja, eu percebia que os ministros não se agradavam no modo de eu tocar, não tinha nada de errado, mas também não estava completamente certo: a minha forma de tocar não fazia parte do estilo, tocava Worship com uma baqueta de Jazz (rs). Eu acho que todo musico deve pensar nisso. Cada estilo tem suas nuances, suas características e seus segredos. Eu demorei um tempo para me adaptar. Para mim, meu som era meu som, mas, após um tempo, dei-me conta o estilo tem precedência. Eu lembro que um cantor olhou para mim numa ministração, pisando forte no chão. Comecei a tocar bem forte, mas não era sobre isso que ele estava querendo dizer, não era sobre força, mas sobre pegada, depois de um tempo percebi.

Passaram-se o tempos e eu fiquei mais habituado com o estilo, mas nunca perdi esse instinto percussivo, de pesquisar e ouvir, não escutar, a sutileza que há nos ritmos.

Se analisarmos, a vibração percussiva, o batuque, percebemos que ele influencia o nosso comportamento. O Rasta, no documentário A Primeira Arte, afirma, dado momento, quando fala das vibrações rítmicas: o ritmo baixa a nossa guarda. É verdade, ninguém fica parado ao ouvir um Groove bem feito, mexe o ombro, o pé e, quase sempre, a cabeça, é natural, intuitivo. Isso me impressiona. Durante as minhas andanças eu percebi como as manifestações culturais africana, indiana, indo americana, japonesa, tem, como base, o ritmo. É assim em basicamente todo lugar do mundo. Há uma presença predominantemente rítmica e vagamente, harmônica, talvez um pouco mais melódica, nas manifestações culturais. Claro que não podemos generalizar, mas não pode-se descartar a predominância.

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E o mais incrível disso tudo, eu andei percebendo, é que basicamente todos essas manifestações culturais de base têm o ritmo em seus rituais religiosos. Existe uma relação entre o tambor e o sagrado, sem dúvida. A sensação é que o ritmo abre portais espirituais de acesso para o desconhecido, dentro de uma ordem não-rítmica. A constante repetição gera em nós um sentimento de transe, talvez. Não sei explicar o mecanismo por trás disso, e afirmo ser essa um constatação completamente empírica, mas, meus amigos, não posso descartar.

Eu, durante um bom tempo, dei aula para crianças; foi um dos momentos mais incríveis da minha vida. Percebi que o ritmo era uma das linguagens primordiais para a comunicação das crianças. Durante dois anos eu dei aula para crianças especiais, na APAESJN -RS. Comecei de modo rústico, com poucos recursos, e, sobretudo, instrumentos. Fiquei meio perdido nos primeiros dias, sem material para auxiliar as minhas aulas; depois, pensei: Naná Vasconcelos dizia — o corpo é o primeiro instrumento. Segui seu conselho e comecei a trabalhar o ritmo utilizando o corpo. Foi notório o desenvolvimento motor das crianças, sem falar na comunicação, ora linguistica e, quando não, musical. A comunicação humana está além da linguagem. O projeto tomou dimensões inimagináveis para toda equipe, ganhamos concursos de talentos pelo Brasil e chegamos a final de talentos das APAE do Brasil, em Manaus. O ritmo faz isso.

Todas as minhas reflexões, que geralmente passa na cabeça de um baterista ou percussionista, acompanham-me até hoje (rs). E, mesmo agora, como um cristão, momento o qual não estou ativo nas atividades percussivas de modo geral e também devido a atividades familiares, eu não deixo de exerce-las.

Um certo dia eu estava tocando numa igreja e o cantor deu liberdade de eu ministrar com os tambores, foi um momento mágico, acessamos lugares íntimos com o Senhor naquele momento. Quando acabou o culto, uma mulher veio até mim e disse - eu olhei para você e, enquanto ministrava, eu via flechas saindo dos tambores e alcançando pessoas, como se aquele som trazia mensagens diversas para quem o ouvia. Aquilo me deixou muito feliz, deu-me a sensação de estar no caminho certo.

Depois do culto, refletindo, percebi que há uma relação entre o ritmo e os mistérios do Espirito, como também nas manifestações culturais nas quais era exposto. Aquela relação era também um característica do Divino, pensei.

Quando afirmo isso, também estou no campo empírico, não há uma teologia formada sobre isso, não conheço nenhum livro que aborda essas questões, mas não tenho dúvida que quando tocamos nos tambores acessamos algo diferente, espiritualmente perceptível. Talvez tanto para mundos obscuros, de espíritos malignos como também para o Divino, para um ambiente espiritual, celestial. Não posso dizer também que os tambores tem esse poder ambivalente, em que pode servir a dois senhores, mas creio que a utilização dele para o serviço do Deus altíssimo é, sim, o lugar correto em que ele pode estar. Eu digo isso por experiência própria, nunca tive tanta força na convicção do que estou fazendo como quando toco meus tambores para IAHWEH.

É comum, como bateristas, em momentos de ministração, acessarmos uma atmosfera de guerra espiritual. Nesse momento, somos nós que trazemos e mantemos essa ambiente, abrimos espaço para que os membros mantenham-se conectados com Deus, batalhando. Eram os tambores que estavam na vanguarda das tropas de combate. Os rufos das caixas e o ritmo constante dos tambores, faziam as tropas avançarem rumo ao combate. Portanto, nesses momentos, nos cultos, estamos, como músicos, fomentando ambientes propícios para que os santos estejam combatendo.

Uma dos maiores desafios como musico, no ambiente cristão, principalmente de oração e intercessão, é o de fomentar uma atmosfera espiritual dentro dos cultos. Isso é diferente de uma performance, um show. Quando estamos conectados com o que o Pai esta comunicando, as vezes, uma simples levada nos tambores, abre portais espirituais que o mais rebuscado groove não chega nem perto. Isso é incrivelmente lindo, eu creio.

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Por isso eu penso muito no compromisso de um baterista dentro do serviço de música, na igreja. Creio que é de suma importância termos a plena convicção de que, quando percutimos, incubemo-nos do papel espiritual de acessarmos lugares de santidade, de amor, de sinais celestiais. Essa consciência é decisiva quando estamos tocando, porque não estamos no palco como vitrine, mas como sacrifício vivo. Carregamos o ritmo em nossas veias e fazemos do tambor parte do nosso corpo para entregarmo-nos a Cristo.

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